11 março 2008

das coisas finitas.

- eu não te amo mais. ela disse enquanto me olhava, analisando a minha reação. e então frisou: - eu não te amo mais. e talvez nunca tenha amado. dessa vez doeu. eu também não amava ela mais, mas achava que a convivencia era suficientemente boa pra não ter que morrer sozinho. e no auge dos 67 anos dela, ela parava na minha frente e dizia que não me amava. aquela mulher que sempre fez o meu almoço e o meu jantar, com pratos diferentes só pra servir um capricho meu. aquela mulher que sempre separava a roupa que eu ia botar depois do banho. eu só conseguia me perguntar porque ela estava me dizendo isso só agora, porque não tinha me dito quando eu era mais jovem e tinha tempo de encontrar outra mulher pra morrer junto. eu olhei pra ela com olhar de repreensão e disse: - põe a mesa do jantar que já tá tarde. ela pôs a mesa do jantar, me serviu, jantou comigo, assistiu o jornal e ficou até a hora de dormir. quando eu fui dormir eu sabia que nunca mais iria ver ela.


07 março 2008

5'43''

5 minutos e 43 segundos olhando a pia pingando.

quanto mais eu olhava, mais a pia pingava e mais o barulho me irritava.
1 minuto e 27 segundos olhando a pia pingando e sem poder fazer nada.

quanto mais eu me aproximava, mais a pia se afastava e mais a torneira travava.
3 minutos e 15 segundos olhando a pia pingando e sem conseguir chegar perto.

quanto mais eu me escondia, mais a torneira abria e mais alto os pingos se ouvia.
4 minutos e 31 segundos olhando a pia pingando e já desistindo de tentar.

quanto mais eu me angustiava, mais rápido a pia pingava e aos poucos eu me sufocava.
5 minutos e 43 segundos olhando a pia pingando sem perceber que bastava parar de olhar.


03 março 2008

Untitled


ilustração de Mel Kadel , responsável também pelo desenho utilizado como fundo para este blog e minha mais nova paixão.


29 fevereiro 2008

das coisas que eu não entendo

ele optou pela cidade mas ela não abriu mão do campo. ela queria acordar com ele todas as manhãs, e depois do sexo, cuidar da plantação. ele queria acordar com ela um pouco mais tarde, e depois do sexo, ir para o escritório. ele queria almoçar com ela todos os dias, no "a kilo" do meio do caminho, as 13:30h. ela queria almoçar com ele todos os dias, em casa, ao meio dia. ela queria todos os dias assistir ao jornal da globo com ele. ele queria todos os dias ter um filminho pra ver com ela. ele queria todos os dias dormir com ela. ela queria todos os dias dormir com ele.

e então não fizeram sexo, não almoçaram juntos, não assistiram nem o jornal e nem um filminho e principalmente nunca dormiram e nunca acordaram juntos.


28 fevereiro 2008

urgência

eu não tenho alma, eu não tenho calma, eu não tenho tempo e eu não tenho medo.



22 fevereiro 2008

lembre-se de mim como uma rosa.

ela passou o dia de vermelho. só conseguia lembrar de suas palavras "lembre-se de mim como uma rosa", e sua ultima rosa tinha sido vermelha. não tirou suas roupas vermelhas na hora de ir na missa das seis e nem na hora do banho. não prestou atenção no que dona maria disse, ou no que o padre pregou. em sua cabeça só tinha espaço para ele e suas rosas. no dia seguinte quando saiu pra comprar pão com suas roupas vermelhas já fedorentas, achou que era um sinal ver que a roseira da dona celeste tinha finalmente um botão. não se importou quando as pessoas começaram a comentar ou quando o médico deu o atestado de loucura. para ela, cada rosa do mundo era um recado dele para que ela jamais se esquecesse. e isso sim importava. viveu ainda alguns anos com suas roupas vermelhas, feliz com sua lembrança e achando o mundo louco por não entender. e na carta de sua morte só pediu um novo vestido vermelho.


15 fevereiro 2008

as botas de crocodilo

era só eu olhar para o lado que eu via aquelas botas de couro de crocodilo. e isso sempre foi suficiente para mim. as botas de couro de crocodilo me traziam a certeza de estar em casa e a certeza de estar bem. eu acordava e elas estavam lá, eu ia dormir e elas estavam lá.

na primeira vez em que fui dormir e elas ainda não tinham chegado, não consegui dormir. fiquei deitada na cama fingindo que dormia até elas chegarem, e na manhã seguinte, quando as botas de crocodilo vieram me pedir desculpas e dizer que isso jamais aconteceria de novo, eu apenas sorri com os olhos cheios de lágrimas.

mas é claro que aconteceu de novo. muitas e muitas vezes. eu passei a usar uma fotografia das botas de crocodilo para me confortarem na hora de dormir, mas era triste quando eu acordava e não tinha nenhuma bota de crocodilo para eu olhar. mas continuei levando, porque ainda assim, nos poucos momentos em que as botas de crocodilo estavam em casa, eu me sentia de fato em casa.

até o dia em que escutei as botas de crocodilo chegando pra jantar - coisa que já não acontecia - e quando a porta se abriu me deparei com um par de tenis nike sorridente. "querida! resolvi mudar! agora tudo vai ficar bem!" eu olhei para aquele par de nikes, olhei para aquela casa, olhei para aquela mesa posta e pensei "meu deus! onde é que eu estou? que lugar é esse?" e fui embora.


14 fevereiro 2008

Untitled

- eu perdi minhas roupas.
- o que você está dizendo?
- o que você não está entendendo?
- o que?
- roupas!
- que que tem?
- eu perdi!

...

- você sabe que está vestido né?
- ih é mesmo


jorgeamanda

não tive o menor pudor. cheguei indiciando "conta tudo!" ele virou assustado. "quem È esse louco que chega de um assalto?" quando viu que era eu ficou felicissimo, tentou disfarçar, mas deixou passar um sorriso maroto de canto de boca. confesso que fiquei feliz também. fomos andando até um dos bares, ele disse que iria se apresentar e depois conversávamos. sentei pra assistir, e me aparece o jorge travestido cantando i will survive. achei o máximo! aquele era o meu garoto... eu nunca achei que nossas brincadeiras o levariam a algum lugar, mas lá estava ele, estrela da noite, e se chamando amanda. amanda ia ser o nome da nossa filha. É incrivel o que 12 anos compartilhando o mesmo corredor do prédio não podem fazer. quando acabou o show ele veio me encontrar. bebemos um martine cada, enquanto me contava como tinha sido depois que fugira de casa, falou sobre homens, mulheres, animais, drogas, eu não lembro muito bem... a essa altura o whisky consumido durante o show já tinha batido. eu só lembro de voltar pra casa pensando "salvei a vida desse menino."


cartas...

escrevia com caligrafia dos esperançosos. dos romanticos que ainda crêem no amor. falava do futuro sem que houvessem dúvidas do nosso destino. e eu adorava. lia as cartas com paixão de criança, com uma ingenuidade muito pura. adorava ter certeza do futuro, e adorava o futuro como ele dizia. aquelas cartas, escritas com tinta nanquim, por vezes borradas com marcas de dedos, provocavam uma revolução em mim. passava dias sonhando, esperando o futuro tão prometido.


hoje continuo recebendo as cartas. mas elas não passam de registros com caneta esferográfica.


13 fevereiro 2008

reconciliação

cansada de toda essa discussão em monólogo, resolveu dar um berro atrás de respostas. mas se engasgou. do engasgo veio a ânsia, e da ânsia o vômito. ele, enojado, vomitou também. era a primeira vez que faziam algo juntos em muito tempo. comovidos dão-se as mãos para juntos buscarem o pano e o balde de água.


sobre mim.

um dia, sem perceber, calcei errado os sapatos. quando me dei conta já estava com os dedões apontando pra fora. e agora, me vejo assim, obrigada a andar do avesso, combinando minha alma e o meu defeito.